quinta-feira, 5 de novembro de 2009

A colheita farta da vó Anita


Aos seis anos, vó Anita plantou sua jabuticabeira no quintal. E o tempo encarregou-se de fortalecê-las. A menina crescida encontrou seu príncipe, casou com ele e com a casa dos pais. Frutificou em filhos e netos, privilegiados pela companhia da mãe e vó sábia e de seu paraíso verdejante em pleno centro da cidade. Semana passada, completou 90 anos!, sob o olhar orgulhoso de seus amores, entre eles, a jabuticabeira. Dizem que para presenteá-la, a árvore antecipou-se à data, enfeitou o tronco frondoso de suas flores que mais parecem plumas, e depois cobriu-o de frutos negros e suculentos como nunca antes visto. Presente divino, como as anciãs tão bem sabem preparar.
Outras delicadezas floresceram para celebrar a alegria da data, como o chá-surpresa que reuniu familiares e amigos em ciranda para cantar o Parabéns. Teve lembrancinhas doces, porque meninas de todas as idades adoram essas fofurinhas, e vó Anita, como crafter de mão cheia, não poderia passar sem elas.


Há dois anos, tive a oportunidade inesquecível de conhecer a "floresta" da vó emprestada, lá em Santa Cruz, e suas companheiras de quatro patas: Belinha e Mila. Poderia ter feito um ensaio fotográfico se as condições de fotógrafa fossem melhores. O pátio, pequeno em extensão, abriga dezenas de espécies de plantas, novidades e flores há muito não-vistas pelos recantos e canteiros. Voltei com o porta-malas transformado em um viveiro de mudas, arbustos já crescidos e até uma pequena árvore. Generosidade da mãe e da filha, guardiãs de espaço sagrado e curativo, que hoje colorem meu quintal e garantem a lembrança diária das amigas.

E como as frutinhas não caem mesmo longe do pé, a filha Lourdes, minha grande amiga de coração gigante, que me empresta até a mãe para chamar de vó, segue escrevendo a história do quintal, a trajetória das Hübler, mulheres fortes que têm a natureza como subsistência primeira da alma. Muito antes do mundo acordar para as questões ecológicas, a professora Lourdes desafiava os conceitos vigentes e ia à luta para defender a árvore da rua, o ninho do poste, as pilhas de papel da escola descartados no lixo... Dona de um imenso amor incondicional a tudo que pulsa, respira, vive, uma reverência constante à natureza, uma afetividade materna latente à Terra. Abençoada genética (espiritual?) que vai levando em frente as melhores qualidades ancestrais.
Lá, tudo cresce rápido, feito massa de pão em dia quente, e se multiplica, e vai tomando conta da calçada, e casa com a vizinha, e gera outra cor, e nasce entre pedrinhas... e dá um trabalhão, mas quem diz que as jardineiras pensam em reduzir o "jardim botânico"!
Talvez para guardar o que os ciclos levam, a jardineira, que também escreve com a mesma desenvoltura com que lida na terra, tem nova paixão: a fotografia. E não é que brincando com seus cliques pela cidade e na zona rural, a que se diz aprendiz já foi premiada! A foto, do Templo Maçônico (à direita no postal), levou o primeiro lugar em concurso do seu município. Os bastidores, soube por telefone: para captar o melhor ângulo, com a acácia emoldurando o prédio, a fotógrafa deixou de lado a inibição e ajoelhou-se na calçada, ao pé do Templo, cedo da manhã, enquanto em frente os trabalhadores esperavam o ônibus na parada.
Porque imagens guardam, sim, segredos, e quem tem sensibilidade para garimpá-las é capaz de nos surpreender sempre, a festa da vó Anita driblou duplamente o calendário e desembargou aqui hoje, via sedex. Que segredos aquela caixa inesperada poderia resguardar? Assim que abri, fui tele-transportada no tempo: para trás, com as cenas da festa de 90 anos que não pude participar, e para frente, com os presentes de Natal! produzidos pela dupla. Quase ouvi o ho-ho-ho do velhinho barbudo rindo do meu estado eufórico.

Não estava lá, mas tenho a bonita homenagem publicada no jornal e o coração de biscoito...



Tenho também mimosices preciosas produzidas pelas mãos ágeis e pacienciosas da vó Anita e sua discípula, que começam a produção natalina no meio do ano, e a cada ano inventam uma moda nova. Confesso que espero o presente das "meninas" prendadas com expectativa. Como poderia ser diferente se me enchem de mimos há muuuitos Natais? Dessa vez, guardanapo aplicado, pano de prato com barrinha floral, mini-oratório, íma de joaninha, embalados com uma customização digna dos melhores designers.

Mais dedicação viajou pelo caminho florido do afeto...
Uma agenda dos próximos três meses, totalmente preenchida por um roteiro para guiar os passos por todos os anos que virão. Um mapa, conduzido pelas palavras colhidas de grandes mestres, recortadas ao longo da jornada, coladas em papel reciclado. Um "viva à vida" contagiante...

Que vem lá de Santa Cruz, pela voz de quem reza quando o Sol nasce de uma maneira só sua: distribuindo grãos aos pássaros em forma de cruz (santa) na calçada do jardim, enquanto agradece e pede proteção a todos. (Quem não chega a tempo do café da manhã, pode servir-se depois no restaurante.)

Sim, querida, os anjos disseram e continuarão dizendo amém aos milagres que o teu bom coração, movido à boa vontade, promove por onde passas. Obrigada, sempre, por partilhá-los e por me acolher no ninho farto da vó Anita.

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Wandschoner, protetor das paredes e da história

Em Ivoti (RS), Cidade das Flores, uma antiga e bela tradição vem sendo resgatada pelo projeto Tecendo Memórias. Pude conferir de perto os wandschoner no fim de semana, quando a cidade recebeu visitantes para a Feira das Flores, junto ao núcleo de casas enxaimel. Foram três dias de um colorido intenso ressaltado pelo Sol forte do verão antecipado. Flores, arbustos, temperos, em abundância pelos canteiros dos diferentes jardins, paisagismo caprichado, propostas inovadoras despertaram nas visitas uma vontade urgente de botar a mão na terra, semear, cuidar, florir quintais, recantos, cantinhos... Além de toda essa beleza proporcionada pelo trabalho dos floristas e paisagistas, a mostra de artesanato também encantou o público. A mim, especialmente o trabalho das bordadeiras, senhoras do Grupo de Terceira Idade Amizade que estão há anos se dedicando a recuperar o espaço nobre dos panos protetores de paredes, num processo de resgate das memórias histórico-afetivas da comunidade teuto-brasileira. Os wandschoner, do dialeto Hunsrück, é um artesanato típico da Alemanha que foi trazido para o Brasil pelas famílias imigrantes alemãs. Confeccionados em tecido de algodão, têm no centro uma mensagem bordada (provérbio popular, citação bíblica...), escrita em língua alemã. Em torno da mensagem geralmente são bordados ramos de flores. Nas paredes, refletem e transmitem valores e normas das famílias. Durante a Segunda Guerra Mundial, a língua alemã foi proibida no nosso país, e assim a arte de bordar wandschoner acabou abandonada pelas mulheres.
Graças ao empenho do Projeto, coordenado pelo Instituto Superior de Educação Ivoti, desde 2004 a atividade foi retomada. As bordadeiras experientes encarregam-se de passar adiante a técnica e a alma dos panos. Em oficinas, já capacitaram mais de 3o mulheres a dar continuidade à arte delicada das imagens e palavras coloridas de história. E dessa forma, além de contribuírem para renascimento de uma tradição singela e carregada de significados, também semeiam uma nova alternativa econômica para essas novas artesãs, de diferentes idades, e para o município. Uma iniciativa movida a entusiasmo que se reflete no primeiro momento de conversa com as omas. Com a maior paciência, leram e traduziram várias frases dos panos expostos, enquanto minha vontade crescia de sentar na roda para ensaiar uns pontinhos nessa história tão bem bordada.

A Vivianne, do De(coeur)ação, também mostrou o uso abusadamente lindo de panos de parede, estes bem brasileiros, nas imagens do fotógrafo João Urban.