terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Salve Isabel, que salva o verão!

Raras são as qualidades do verão que consigo reconhecer. A antipatia é genética, não tenho dúvida, herança da família materna que vem envelhecendo com a mesma intolerância ao calor dos seus tempos de jovens. As tias e a mãe, algumas chegando e outras passando dos 80, vestem seus trajes de guerra nos dias escaldantes como os últimos aqui, e assim, de calcinha e sutiã ou vestido de praia curto e surrado, abanam-se e desfiam um novelo de incômodos e mal-estar que só ameniza quando São Pedro providencia uma chuva que abranda um pouco os termômetros. Junto-me ao sofrimento delas e aos seus hábitos desde criança, sentindo na pele suada que não nascemos para esse clima que nos maltratada por meses a fio. Com essa sensação de inadequação, assisto à euforia dos amantes do "sal, sol, sul" com a estranheza de um alienígena. Pergunto-me o que eles vêem de graça, e sem resposta que me convença, confiro a meteorologia várias vezes da manhã à noite. Se a notícia é de uma mudança no quadro dos bem mais de 30 graus, repasso a informação rapidinho para acalmar a turma das calorentas, e passamos então a olhar para o céu à espera das nuvens gordas e cinzas que possam botar água nessa fogueira, ou ao menos encobrir o sol e nos presentear com um dia nubladinho.
Feitas as queixas, desabafo para tentar exorcizar o bafo quente dessa primeira tarde de férias, mostro o resultado do tema de casa que me propus ao levantar na madrugada. A proposta: eleger ao menos algumas coisas bacanas do verão, dentro da linha "tudo tem seu lado bom". Missão um pouco facilitada pelo sangue de Poliana que corre fluido nas minhas veias, a primeira imagem vista foi a de um belo cacho de uvas Isabel. Agarrei-me a ela, com a nítida impressão de ser salva, afinal, quem consegue reconhecer uma qualidade, vai encontrar outras e quem sabe lidar melhor com o desassossego dessa realidade que é fato e ponto. Então, aproveitando os graus a menos da madrugada e o silêncio da casa que dormia, fui pra cozinha.

Um cesto de uvas Isabel, vindas lá de Bento, me esperava.
Na panela com um pouco de água, elas ferveram, ferveram... Depois, passadas rapidamente na peneira, a alquimia mostra o resultado: diluído em mais um pouco de água gelada, com uma colherzinha de açúcar, é o melhor suco, o preferido em disparada que faz a festa do meu paladar desde menina. Gosto ma-ra-vi-lho-so de verão... (me rendo!)
Com as cascas e sementes que ficam na peneira, vamos ao segundo momento da rendição: passo uma colher de pau com vigor até extrair toda polpa. Levo ao fogo com uma boa quantidade de açúcar (usando o olhômetro) e mexo, mexo... como uma autêntica nonna até ganhar consistência e virar geleia. O café da manhã que se anuncia com a passarinhada acordando lá fora tá garantido. A essas alturas, o perfume doce das uvas já tomou conta da casa e me pego falando sozinha: Que cheiro ma-ra-vi-lho-so de verão!

Mas faltava ainda um outro ritual que guarda o gosto inesquecível das férias da infância, minhas e também do filho. O bolo de uva era um dos primeiros itens da lista nos preparativos da mãe, e depois meus, quando virei mãe, para os dias na praia. Preparado na véspera, tinha vida curta. Metade já se ia na viagem, a outra, no primeiro lanche depois do primeiro banho de mar. Simples, mas com um detalhe que pede paciência: retirar as sementes de cada bago. Topei a parada e com uma faquinha fui fazendo a cirurgia, abrindo cada uva ao meio. Depois, a massa:
Na batedeira, 200 g de manteiga, 3 gemas e 2 xícaras de açúcar, batendo até ficar ficar uma mistura clara. Juntei intercaladamente 2 xícaras de farinha de trigo, uma de maizena, 1 colher(sopa) de fermento em pó e uma xícara de leite. No final, as 3 claras em neve. Na hora de enformar, deixei a nostalgia de lado e resolvi inventar, usando forminhas de papel (dentro de forminhas de empada). Coloquei as uvas sem sementes, passadas na farinha de trigo, no centro dos bolinhos e polvilhei açúcar cristal. Foram ao forno alto nos primeiros 15 minutos e médio até estarem coradinhos.

Enquanto me deliciava com o primeiro bolinho saído do forno, a memória gustativa, que faz milagres com o tempo, me puxava a orelha, pela voz da minha mãe que ainda hoje não deixa passar: Não se come bolo quente, menina! E minha porção rebelde, que continua esperneando com algumas sentenças, abocanhou outro pedaço, toda senhora de si.

Férias inauguradas com a madrugada produtiva, vejo o sol alaranjar o céu do dia nascido e as cigarras darem início a sua cantoria estridente, sinais evidentes de mais um dia "daqueles", e volto toda prosa para a cama no quarto refrigerado. Desligar o despertador, funcionar pelo nosso relógio, dar voz ao que nos salva: coisas muuuito boas das férias (algumas, tá bom, das férias de verão).