sábado, 17 de julho de 2010

Hibernando com os lobos

(uma folha marcando o tempo no belo registro do amigo Alan, em Gramado, RS)
Chove e o frio intenso continua no Sul. Tempo bom para curtir a toca. Recolhida, encolhida, sigo a caminhada com as "lobas", com o livro a tiracolo. Fica o convite para se aquecerem também com mais um capítulo.

A volta ao lar: O retorno ao próprio Self

Existe o tempo dos homens e o tempo selvagem. Quando eu era criança nas florestas do norte, antes de aprender as quatro estações do ano, eu imaginava que havia dezenas de estações: o tempo das tempestades noturnas, o tempo de relâmpagos silenciosos no horizonte, o tempo de fogueiras nos bosques, o tempo de sangue na neve; o tempo das árvores de gelo, o das árvores encurvadas, o das árvores chorando, o das árvores cintilantes, o das árvores empanadas, o das árvores ondulando apenas as folhas mais altas e o das árvores deixando cair seus frutos. Eu adorava as estações da neve de diamantes, da neve fumegante, da neve que chia e até mesmo da neve suja e da neve endurecida, pois estas últimas indicavam que estava chegando o tempo dos botões em flor no rio.

(uma árvore cintilando no inverno no Parque da Cascata do Caracol, em Canela, RS)

Essas estações eram como visitantes sagrados e importantes, e cada uma mandava seus arautos: cones de pinheiros abertos, cones fechados, cheiro de folhas apodrecendo, cheiro da chuva que vem, cabelos quebradiços, cabelos escorridos, cabelos volumosos, portas frouxas, portas justas, portas que não fecham de jeito nenhum, vidraças cobertas de fios de neve, vidraças cobertas de pétalas úmidas, cobertas de pólen amarelo, salpicadas de resina. E a nossa própria pele também tem seus ciclos: ressecada, suarenta, empoeirada, queimada de sol, macia.

(galho seco do pinheiro aqui de casa, excelente para começar o fogo do fogão a lenha, clicado pelo filho)

A psique e a alma das mulheres também têm seus próprios ciclos e estações de atividade e de solidão, de correr e de ficar, de se envolver e de se manter distante, de procura e de descanso, de criar e de incubar, de participar do mundo e de voltar ao canto da alma. Enquanto somos crianças e meninas, a natureza instintiva percebe todas essas fases e ciclos. Ela paira bem perto de nós, e nós estamos conscientes e ativas em períodos diversos, segundo a nossa decisão. As crianças são a natureza selvagem e, sem que recebam ordens para isso, elas se preparam para a chegada dessas estações, saudando-as, vivendo com elas e guardando desses tempos recuerdos, lembranças: a folha cor-de-carmim dentro do dicionário; as penas de pássaros; as bolas de neve no congelador; aquela vagem, varinha, osso ou pedra especial; a concha diferente; a fita do enterro do passarinho; um diário de perfumes da época; o coração tranquilo; o sangue que se excita; e todas as imagens nas suas mentes.

(pedrinhas recolhidas em momentos bons por aí, reenergizadas ao Sol, para voltarem ao meu altar)

Houve um tempo em que vivíamos em harmonia com esses ciclos e estações ano após ano, e eles viviam em nós. Eles nos acalmavam, faziam com que dançássemos, nos sacudiam, nos tranqüilizavam, faziam com que aprendêssemos instintivamente. Eles faziam parte da pele da nossa alma — um pelo que envolve a nós e ao mundo natural e selvagem — pelo menos até o momento em que nos diziam que na verdade havia apenas quatro estações no ano, e que as próprias mulheres tinham apenas três estações — a infância, a idade adulta e a velhice. E supostamente isso era tudo. No entanto, não podemos nos permitir perambular como sonâmbulas envoltas por essa invenção frágil e desatenta, pois ela faz com que as mulheres se desviem dos seus ciclos naturais e profundos e, portanto, sofram de aridez, exaustão e nostalgia. É muito melhor que voltemos aos nossos próprios ciclos exclusivos e profundos, a todos eles, a qualquer um deles, ciclos importantes da mulher de volta ao lar, ao lar selvagem, ao lar da alma. (Clarissa Pinkola Estés)

(crochetando a almofada plagiada da casa da amiga Laély, seguindo os passos das lobas e "voltando pra casa")

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Com a bíblia debaixo do braço

(exercício de desapego, a velinha de tantos Natais acendeu a chaminé para ajudar a aquecer a casa gelada ontem à noite)
Não tenho religião formalizada, nem formatada. Católica de um berço pouco praticante, mas movido a "fé na vida, fé no homem, fé no que virá", um triângulo de força que nomeio de Criador, encontro-O em diversas crenças, filosofias, correntes religiosas e assim, num caleidoscópio ecumênico, procuro sustentar o vínculo com o sagrado, com o divino, com a espiritualidade.

(relicário montado com Santa Teresinha e pequenos elementos, presentes de amigos)

A pequena biblioteca da casa é vitrine dessa "salada" mística-religiosa. Os ingredientes passam pelo budismo, pelo tarô, pela astrologia, pelo taoísmo, pela cabala, pelo hinduísmo, até pelo ateísmo (para temperar os sentidos e ampliar a visão), por aspectos do paganismo, os que se vinculam à natureza e aos elementais, e pela psicologia, como caminho experimentado como paciente e comprovado como potente ferramenta para abrir frentes internas e nos aproximar, também, de Deus.

(bandeiras de oração, budistas, da loja Mãos do Mundo, em Canela, RS)

Entre os livros, um deles conquistou minha alma de maneira tão arrebatadora, que ganhou o título de bíblia. Faz por merecer o status. Por quase 20 anos vai e volta da estante ao criado-mudo, aceita ser relido da forma mais anárquica possível (às vezes um parágrafo de uma página, outro de 10 folhas adiante), responde perguntas que ainda nem formulei, pergunta o que ainda não sei responder, mas antes de tudo me acolhe, dá colo, ilumina onde há sombras, me acorda e dá corda ao que pede para florescer...

Quero então compartilhar um pouquinho do Mulheres que Correm com os Lobos, da psicóloga junguiana e contadora de histórias Clarissa Pínkola Estés, com vocês. Às que não conhecem o livro, aviso que não é leitura que agrada a todas, ou não em qualquer estação da vida, como acontece com frequência com diferentes títulos. A tal hora certa funciona mesmo nessas afinidades e distanciamentos com temas, autores, não é mesmo? Às que já foram apresentadas a ele, aprovando ou desaprovando, um convite para que nos acompanhem nessa "trilha de lobas" que quero estender em alguns capítulos do AMÉM, pinçando trechos que acredito farão bem a todas nós (e aos "lobos" também). Começamos assim:
(...) Quando as mulheres reafirmam seu relacionamento com a natureza selvagem, elas recebem o dom de dispor de uma observadora interna permanente, uma sábia, uma visionária, um oráculo, uma inspiradora, uma intuitiva, uma criadora, uma inventora e uma ouvinte que guia, sugere e estimula uma vida vibrante nos mundos interior e exterior. Quando as mulheres estão com a Mulher Selvagem, a realidade desse relacionamento transparece nelas. Não importa o que aconteça, essa instrutora, mãe e mentora selvagem dá sustentação às suas vidas interior e exterior.

Portanto, o termo selvagem neste contexto não é usado em seu atual sentido pejorativo de algo fora de controle, mas em seu sentido original, de viver uma vida natural, uma vida em que a criatura tenha uma integridade inata e limites saudáveis. Essas palavras, mulher e selvagem, fazem com que as mulheres se lembrem de quem são e do que representam. Elas criam uma imagem para descrever a força que sustenta todas as fêmeas. Elas encarnam uma força sem a qual as mulheres não podem viver. (...)
A compreensão dessa natureza da Mulher Selvagem não é uma religião, mas uma prática. Trata-se de uma psicologia em seu sentido mais verdadeiro: psukhe/psych, alma; ology ou logos, um conhecimento da alma. Sem ela, as mulheres não têm ouvidos para ouvir o discurso da sua alma ou pra registrar a melodia dos seus próprios ritmos interiores. Sem ela, a visão íntima das mulheres é impedida pela sombra de uma mão, e grande parte dos seus dias é passada num tédio paralisante ou então em pensamentos ilusórios. Sem ela, as mulheres perdem a segurança do apoio da sua alma. Sem ela, elas se esquecem do motivo pelo qual estão aqui; agarram-se às coisas quando seria melhor afastarem-se delas. Sem ela, elas exigem demais, de menos ou nada. Sem ela, elas se calam quando de fato estão ardendo. A Mulher Selvagem é seu instrumento regulador, seu coração, da mesma forma que o coração humano regula o corpo físico.

A jornada com Clarissa segue no próximo post, de mãos dadas, espero, com as lobas que circulam por aqui. Amém!

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Quem bate?

É o frio!


Que conforme a meteorologia deve desembarcar com força no território gaúcho nessa madrugada, com direito à geada e, provavelmente, ao vento minuano que até agora mantém-se recluso nessas paragens.
Bate junto uma nostalgia...
Dos meus 7 aninhos, quando o comercial das Casas Pernambucanas, assistido na TV dos vizinhos, anunciava o inverno que naqueles tempos parecia mais rigoroso. Será que tudo parece mais (bonito, cheiroso, amplo, gostoso, alegre, colorido... e também mais triste, escuro, assustador, doloroso, gelado...) na infância? Porque o inverno continua me trazendo impressões carregadas de boas lembranças, e continua me parecendo intensamente aconchegante e me envolvendo num bem-estar que me faz mais produtiva e conectada a projetos que preenchem os dias de sentido, o anúncio das frentes frias provoca um certo alvoroço por aqui. Logo começam os preparativos para curtir as baixas temperaturas que devem bater à porta, e a casa se movimenta lembrando contos de Grimm ou Andersen, com personagens recolhendo lenha, fogão com brasas, sopa borbulhando, o histórico caderno de receitas revisitado, sacolas de lã e agulhas em prontidão, mantas e cachecóis a postos na cabideiro, bolsa de água quente revisada e, para garantir pés quentinhos, meias grossas recuperadas do fundo da gaveta e uma pantufa-boneca, de flanela (como recomenda as Casas Pernambucanas) que aqueceu meu peito à primeira vista, numa loja lá em Canela.

E para reforçar o clima de lar doce lar de contos de fadas, um pequenino juntou-se à turma da casa no fim de semana, presente da doce sobrinha, sucessora no trabalho com o Sininho e nos encaminhamentos das fantasias infantis.

Fim de semana que começou com reunião de pessoas queridas, ex-colegas amigos, amigos ex-colegas, em volta de panelas fumegantes de feijoada que deram um suador à cozinheira destreinada de abastecer grandes mesas....

Mas que com as parcerias nas tarefas... Driblou até problemas com o fogão do salão de festas da amiga. E lá foi a panela passear em outra cozinha, para na volta ser ovacionada pela torcida... E finalmente ouvir-se o tão aguardado chamado: a-t-a-c-a-r!Temos fome mesmo de quê? Feijão, arroz, couve, farofa e risadas, abraços, calor dos laços bem atados pelo coração, saudade de alguns aplacada, saudade de outros antecipada...

(Mas, não adianta bater, saudosismo prematuro, que eu não deixo você entrar...)