terça-feira, 24 de agosto de 2010

Unidos pelo pão

Seu João, pai emprestado, ama enlouquecidamente fazer pão e venera sua máquina panificadora como uma entidade a quem se refere como um ser animado, parecendo ser dotada até de alma, tamanha a intimidade com que a trata. É mesmo do seu feitio adotar quem de alguma maneira fala a seu coração, como as pombas da praça, com quem se comunica através de um apito especial, com o qual as chama para as refeições na sua sacada. Com as formigas o papo é outro, mais de perto. Agachado, observa seus movimentos e relata com minúcias como elas se comportam e relacionam entre si, não podendo faltar também uma merendinha, um torrãozinho de açúcar, para alegrá-las.
Dono de uma vitalidade que dá um olé na sua idade, é um homem do lar, com todos os predicados que o posto exige: cozinha, lava, varre, tira pó e, o que mais lhe diverte, faz as compras diariamente em muitos vaivéns ao mercado, açougue, padaria, fruteira, aproveitando para abastecer também a despensa das vizinhas idosas com dificuldades de locomoção. O dia é curto para seu João, que levanta cedo e tem as horas preenchidas por essas tantas tarefas que lhe asseguram noites bem dormidas e a manutenção de sua saúde integral. A receita, hoje tão difundida, de manter a mente e o corpo ocupados para desfrutar de uma velhice saudável, seu João conhece desde cedo na prática, e é praticando sua sabedoria que garante seu contagiante prazer de viver.

Nas últimas semanas, uma novidade vem colocando fermento em seu entusiasmo culinário, e como a vida às vezes imita a sétima arte, assisto de camarote seu João incorporado de Julie Powell, imbuído tal a personagem do livro/filme do propósito de reproduzir um número X de receitas. Receitas de quê? Ora, o que poderia lhe desafiar dessa forma: pães!
Mas essa é uma história que teve suas primeiras cenas há alguns meses, num encontro rápido e certeiro, como costumamos ver nas telonas: amor à primeira vista. Aquecido pela notícia da vinda da amiga Laély ao Sul, nosso padeiro prontamente se escalou para preparar o pão do café de boa-vindas à minha hóspede. Caprichou ao máximo, e agradou em cheio a visita que adora pão caseiro. Dias depois, quando se encontraram, o papo dos dois feras em panificação já estava rascunhado: pão pra cá, pão pra lá, em pouco mais de uma horinha, os dois tinham traçado uma cumplicidade que só as grandes afinidades são capazes de justificar. E estava oficializada nova adoção no coração do seu João. Desde então, não passa semana sem que ele me pergunte: - E a guria lá de longe, quando volta? Ou faça profecia: - Ainda ganho na sorte grande e vamos ir todos lá na terra da guria! E foi a guria, mestra em levedar afeto, quem gerou o desenrolar do roteiro, presenteando o "velho" amigo de longe com o livro sobre pães, hoje sua maior relíquia, ao lado, é claro, da máquina venerada.
O almoço histórico que apresentou a dupla apaixonada em colocar a mão na massa, os quatro sorrisos revelando o contentamento pelo encontro
A missão logo passou a ser cumprida: testar as 72 receitas! E como tenho o mérito de ser a agente desse encontro, fui instituída como a degustadora dos pães que chegam ainda morninhos. Meu papel (de tamanho sacríficio...rs) também é o de relatar a experiência à Laély, conferindo uma espécie de nota a cada novo tipo de pão que vai saindo da máquina, sim, porque as receitas são próprias para a sua modernidade. Desde sábado, quando um pão branquinho e aerado (primeira foto) chegou aqui pelas mãos apressadas do seu João, e me desmanchei em elogios entre uma bocada e outra, outras ideias fermentam na sua cabecinha branca, mas isso é surpresa que corro o risco de perder o cargo de provadora se "der com a língua nos dentes".

No primeiro teste, um pão meio bolo, perfumado de laranja, para acompanhar o chimarrão do padeiro colorado

Se Julie encontrou novos e melhores rumos, internos e externos, na maratona gastronômica guiada pelo livro de Julia Child, seu João me relembra da necessidade de estarmos abertos para que os presentes, todos - alguns em forma de gente, outros embalados pela natureza, outros projetados pelas infinitas manifestações da beleza - cumpram sua missão: a de nos privilegiar com abençoados momentos de comunhão. A deles, deliciosamente sacramentada pela alegria da multiplicação dos pães. A minha, pela oportunidade valiosa de aprender com eles a promover milagres (e a fazer pães, habilidade culinária onde sou um zero à esquerda).

"Levei muito tempo para entender isso, mas o que realmente me atraiu no livro MtAoFC foi o aroma profundamente entranhado de esperança e descoberta da realização contido nele. Eu achava que eu usava o Livro para aprender a preparar comida francesa, mas na verdade eu aprendia a descobrir a porta secreta das possibilidades." (Julie Powell)

Atualizando - O comentário da Cecília, do Quilts são Eternos, chega para enriquecer o tema: "Tudo o que você contou serve para justificar ainda mais a origem etimológica da palavra `companheiro´: aquele que divide o pão com o outro". Não é lindo?! Gosto mais ainda agora da expressão sabendo da sua raiz. Obrigada, mestra das palavras!

13 comentários:

Taia Assunção disse...

Que coisa mais linda...amei a devoção dele pela máquina. A magia da amizade e o duro sacrifício que lhe tem sido imposto: Degustar os pães...rsrsrsrs. Coisa mais querida o Seu João, coisa mais querida o sonho de ir visitar a "guria"...amei. Beijocas!

Cacau Gonçalves disse...

Querida Rô, senti o cheirinho de pão daqui...rs
Ando numa fase de busca de novas sensações na cozinha. Tá meio difícil arrumar tempo, mas vez por outra consigo.
Como disse a Taia, "coisa mais querida o seu João"!
beijo carinhoso nele e outro em vc

Cynthia Le Bourlegat disse...

ah, que fofo o seu Jõao! Sabe que minha vó tb comprou uma máquina de pão e faz quase todo dia um diferente. Pena que é diabética e não deveria comer, mas o estímulo de fazer todo dia uma coisa nova é muito bacana. Eu fiz um de cevada no final de semana, ficou bom... Apetitoso esse pão bolo hein? beijoq querida

Cecilia Helena disse...

Oi Rosana, que sacrifício hein! Ó meu Deus ter que experimentar todos essas delícias???? hehehehe
Compartilho com voê minha insuficência em fazer pães, já desisti rsrsrs saem durinhod durinhos! Mas sabe, a maioria dos padeiros são homens, tenho um tio que faz pãezinhos de batata como ninguém e sem máquina! Esse Seu João é um homem que sabe substituir os prazeres da juventude por outros agora da melhor idade, com sabedoria!E continua a aprender e ser prestativo! Bjs

Cris Rosa disse...

Oi Rosana!
Adoro pão feito em casa! Eu faço!
Adorei a história da seu João!!!
Sorte sua poder provar as delicias feitas por ele! E parabéns a Laely por presenter o seu João com o livro de receitas!
Meu sempre apreço pelo modo que vc escreve, amo!
Bjkas

Cecilia e Helena disse...

Olá, Rosana!
Tudo o que você contou serve para justificar ainda mais a origem etimológica da palavra "companheiro": aquele que divide o pão com o outro. Ou o refrão espanhol que diz: Fulano es tan bueno como el pan.
Um abraço carinhoso da Cecilia.

Rosana Sperotto disse...

Taia, essa história dos dois me encanta, e quando ele se entusiasma com a visita à "guria", tenho vontade de comprar a passagem naquele momento. Beijo!

Cacau, "bruxinha" querida, sempre gostei de cozinhar, e adoro quando vejo o povo entusiasmado com as panelas. Boas e deliciosas descobertas por aí então! Darei o beijo no nosso padeiro fofo. Beijos daqui também!

Alexandre, fiquei ainda mais encantada com a proposta do seu João quando me dei por conta da semelhança com a do livro. Imagina que roteiro lindo para um curta, né? Adoro saber que adoras minhas histórias. Obrigada. Beijo!

Cynthia, nem me fala: minha mãe também é diabética, e foi casar logo com um padeiro de mão cheia(rsrs). Já eu sou um desastre com as massas de pão. Faz tempo que não me testo, quem sabe a mão mudou, né? Beijocas!

Cecília, a disposição do seu João dá de 10 na maioria das pessoas mais jovens que conheço. O vaivém, atualmente, é feito por escada, no quarto andar, já que o elevador está no conserto. Sobe e desce como se fossem meia dúzia de degraus. A motivação, com certeza, vem da vontade de colaborar com quem precisa. Que exemplo, né? Beijos, querida!

Cris, não sou de comer muito pão, mas os do seu João, nossa, não tem como resistir! Preciso moderar, pra não sair rolando(rsrs). Beijo grande!

Cecília, se me permites, vou atualizar o post com essa informação tão interessante e linda que desconhecia. Sabe, acho que deveria te consultar antes de desenvolver alguns textos. A etimologia me fascina. Obrigada por contribuir e enriquecer o post! Abraço grande, companheira!

Pierelantijntjes disse...

Hello Rosana,
Thank you for visiting my blog. I see you craft wonderful things and cook delicious food. I have seen the movie Julie and julia too, and i realy loved it!
Wish you a wonderful day,
Hugs from Holland,
Ester

Laély disse...

Rosana, demorei, mas cheguei.
Sobrou uma fatia? Trouxe minha contribuição, de longe:
http://saladala.blogspot.com/2010/08/compaonheiros.html
Senti-me abraçada, acarinhada, presenteada!
Um beijo nele!
Outro, pra você! Smack!!

Rosana Sperotto disse...

Ester, seja bem-vinda de tão longe! Volte outras vezes! Abraço carinhoso

Laély, sempre terá pão quentinho nessa casa pra ti, companheira! Seu João moverá montanhas se for preciso para alimentar a "guria de longe". Hoje, tenho queijadinha da Lá, serve? Ou melhor, queijadona, porque na falta das forminhas de papel, assei numa fôrma. Aprovadíssima, isso que usei coco de pacote e parmesão tabajara.
Querida, viste a repercussão desse pão? Estou em estado de graça desde que fui surpreendida também pelo post da Cecília. Como comentei lá, vivenciamos o companheirismo na prática pelos posts irmanados no sentido da palavra. É muito lindo isso!
Beijos de comadre! Smack, smack!

Fernanda Reali disse...

Ai, que post lindo! Vou já retuitá-lo! Seu João sabe tudo e ainda por cima é colorado Bi campeão da Libertadores!!!

Mas eu faço um aviso: esta máquina de fae rpão é um perigo. Em 5 meses, engordei 5kg com ela. Fecheia- e agora só a uso uma vez ao mês. Perdi a duras penas os 5kg.

Tenho a teoria de que deveriam inventar o Glade aroma de pão caseior. Ai, que cheirinho bom!

bjs

Rosana Sperotto disse...

Fernanda, seu João, além de venerar a supermáquina de pão, venera o Inter, é colorado doente. Imagina a alegria com o bi! Olha, fui salva de ganhar a tal panificadora pelo filho, que conseguiu desmobilizar o pai pelo presente escolhido há alguns Natais. Confesso que me aliviei, já que ela não seria de maior utilidade aqui. Comemos pouco pão, eu, praticamente, quase nunca, a não ser os do projeto "72 pães" que sou obrigada a provar (rsrs). E sei bem como é duro perder uns quilinhos... apesar de ser uma glutona para outros alimentos. Adorei a ideia do Glade! Beijo, obrigada por retuitar!

Ana Matusita disse...

Vim até aqui saber do seu pai emprestado, por conta do comentário lá nas flores gentis que recebi!
Seo João é dos meus: gosta de colocar a mão na massa e de cultivar carinho e amizade.
Sorte grande a sua tê-lo por perto e ser a provadora oficial!
bj,
Ana