Raras são as qualidades do verão que consigo reconhecer. A antipatia é genética, não tenho dúvida, herança da família materna que vem envelhecendo com a mesma intolerância ao calor dos seus tempos de jovens. As tias e a mãe, algumas chegando e outras passando dos 80, vestem seus trajes de guerra nos dias escaldantes como os últimos aqui, e assim, de calcinha e sutiã ou vestido de praia curto e surrado, abanam-se e desfiam um novelo de incômodos e mal-estar que só ameniza quando São Pedro providencia uma chuva que abranda um pouco os termômetros. Junto-me ao sofrimento delas e aos seus hábitos desde criança, sentindo na pele suada que não nascemos para esse clima que nos maltratada por meses a fio. Com essa sensação de inadequação, assisto à euforia dos amantes do "sal, sol, sul" com a estranheza de um alienígena. Pergunto-me o que eles vêem de graça, e sem resposta que me convença, confiro a meteorologia várias vezes da manhã à noite. Se a notícia é de uma mudança no quadro dos bem mais de 30 graus, repasso a informação rapidinho para acalmar a turma das calorentas, e passamos então a olhar para o céu à espera das nuvens gordas e cinzas que possam botar água nessa fogueira, ou ao menos encobrir o sol e nos presentear com um dia nubladinho.
Feitas as queixas, desabafo para tentar exorcizar o bafo quente dessa primeira tarde de férias, mostro o resultado do tema de casa que me propus ao levantar na madrugada. A proposta: eleger ao menos algumas coisas bacanas do verão, dentro da linha "tudo tem seu lado bom". Missão um pouco facilitada pelo sangue de Poliana que corre fluido nas minhas veias, a primeira imagem vista foi a de um belo cacho de uvas Isabel. Agarrei-me a ela, com a nítida impressão de ser salva, afinal, quem consegue reconhecer uma qualidade, vai encontrar outras e quem sabe lidar melhor com o desassossego dessa realidade que é fato e ponto. Então, aproveitando os graus a menos da madrugada e o silêncio da casa que dormia, fui pra cozinha.
Um cesto de uvas Isabel, vindas lá de Bento, me esperava.
Na panela com um pouco de água, elas ferveram, ferveram... Depois, passadas rapidamente na peneira, a alquimia mostra o resultado: diluído em mais um pouco de água gelada, com uma colherzinha de açúcar, é o melhor suco, o preferido em disparada que faz a festa do meu paladar desde menina. Gosto ma-ra-vi-lho-so de verão... (me rendo!)
Com as cascas e sementes que ficam na peneira, vamos ao segundo momento da rendição: passo uma colher de pau com vigor até extrair toda polpa. Levo ao fogo com uma boa quantidade de açúcar (usando o olhômetro) e mexo, mexo... como uma autêntica nonna até ganhar consistência e virar geleia. O café da manhã que se anuncia com a passarinhada acordando lá fora tá garantido. A essas alturas, o perfume doce das uvas já tomou conta da casa e me pego falando sozinha: Que cheiro ma-ra-vi-lho-so de verão!
Mas faltava ainda um outro ritual que guarda o gosto inesquecível das férias da infância, minhas e também do filho. O bolo de uva era um dos primeiros itens da lista nos preparativos da mãe, e depois meus, quando virei mãe, para os dias na praia. Preparado na véspera, tinha vida curta. Metade já se ia na viagem, a outra, no primeiro lanche depois do primeiro banho de mar. Simples, mas com um detalhe que pede paciência: retirar as sementes de cada bago. Topei a parada e com uma faquinha fui fazendo a cirurgia, abrindo cada uva ao meio. Depois, a massa:
Mas faltava ainda um outro ritual que guarda o gosto inesquecível das férias da infância, minhas e também do filho. O bolo de uva era um dos primeiros itens da lista nos preparativos da mãe, e depois meus, quando virei mãe, para os dias na praia. Preparado na véspera, tinha vida curta. Metade já se ia na viagem, a outra, no primeiro lanche depois do primeiro banho de mar. Simples, mas com um detalhe que pede paciência: retirar as sementes de cada bago. Topei a parada e com uma faquinha fui fazendo a cirurgia, abrindo cada uva ao meio. Depois, a massa:
Na batedeira, 200 g de manteiga, 3 gemas e 2 xícaras de açúcar, batendo até ficar ficar uma mistura clara. Juntei intercaladamente 2 xícaras de farinha de trigo, uma de maizena, 1 colher(sopa) de fermento em pó e uma xícara de leite. No final, as 3 claras em neve. Na hora de enformar, deixei a nostalgia de lado e resolvi inventar, usando forminhas de papel (dentro de forminhas de empada). Coloquei as uvas sem sementes, passadas na farinha de trigo, no centro dos bolinhos e polvilhei açúcar cristal. Foram ao forno alto nos primeiros 15 minutos e médio até estarem coradinhos.
Enquanto me deliciava com o primeiro bolinho saído do forno, a memória gustativa, que faz milagres com o tempo, me puxava a orelha, pela voz da minha mãe que ainda hoje não deixa passar: Não se come bolo quente, menina! E minha porção rebelde, que continua esperneando com algumas sentenças, abocanhou outro pedaço, toda senhora de si. Férias inauguradas com a madrugada produtiva, vejo o sol alaranjar o céu do dia nascido e as cigarras darem início a sua cantoria estridente, sinais evidentes de mais um dia "daqueles", e volto toda prosa para a cama no quarto refrigerado. Desligar o despertador, funcionar pelo nosso relógio, dar voz ao que nos salva: coisas muuuito boas das férias (algumas, tá bom, das férias de verão).
12 comentários:
oi rosana! VENHO SEMPRE AQUI E HJE QUE REPAREI QEU NÃO SOU TUA SEGUIDORA - COMO ASSIM lÚCIA?
AS VAMOS LÁ - QUANDO VI AQUELAS UVAS - AI QUE ME BATEU UMA SAUDADE DO MEU SL - NA CASA DA MINHA MÃE TEM V´RIS PARREIRAS, E É UMA FESTA NO VERÃO - FICAR EMBAIXO DE UMA PARREIRA E SÓ CATANDO UVAS FRESQUINHAS - TINHA TANT UVA QUE MINHA MÃE CONGELAVA A POLPA - E QANDO E VI A SCHIMIA - I QE ME DEU UMA VONTADE DE IR AÍ CORRENDO - SCHIMIA COM NATA - AQUI EM MINAS NÃO EXISTE ! (FRUSTRAÇÃO) AI E ESTES BOLINHOS - QUER ME MATR MESMO - A MINHA MÃE FZIA ATÉ CUCA COM UVA DENTRO - ERA SUCO DE UVA, SCHIMIA, SAGU COM SUCO DA UVA...
BRIGADÃO POR REMETER A ESTE PASSADO TÃO LINDO DA MINHA VIDA
BJS
LÚ
Oi Rosana...
Vim atraída por Isabel e acabei me deleitando com esse texto saboroso...rsrsr
Maravilhoso esse seu olhar poético sobre o cotidiano.
Beijos...
Teu texto é um deleite para a alma!! Lindo fazer coisas tão simples se transformarem em poesia!
Bjs!
Alo,Rosana!
Fiquei assim,meio que encantada,lendo o seu belo texto...Eu aqui no Rio de Janeiro,tambem sofrendo com este calor danado,fico imaginando voces ai no sul...Que ventos quentes sao esses que invadiram o pais e deixam a gente com cara de quem mora perto do Saara?
Eu me sinto uma carioca meio as avessas...Nem pensando em praia ou qualquer coisa parecida...Mas sonhando com dias leves,em que a brisa sopra fresca e serena,nos convidando para passeios agradaveis com ceus muito azuis...
Enquanto a brisa de temperatura agradavel nao vem,me alegro com a sua estoria de uva e verao...Uma delicadeza para o nosso espirito acalorado destes dias...
Eu tambem adoro as uvas e tenho bonitas memorias de infancia com elas...E verdade tambem que carrego na memoria,como todo carioca,gostosos veroes temperados com sol e sal marinho...Mas hoje,fico aqui sonhando com o tempo fresco e agradavel de dias melhores que virao...
Meu caloroso abraco pra voce!
Teresa
Lu, Ísis, Bia e Teresa: o calor aumentou tanto depois deste post aqui no RS, que estive longe também do PC. Ele fica num quarto sem ar-condicionado, e nem com muita paciência fui capaz de suportar. Obrigada, meninas, por andarem por aqui! Beijos
Oi Rosana vejo delicias por aqui, voltarei outra hora com calma, bjs!
ps: Enviei uma carta semana passada para voce espero que nao demore chegar!
Rosana querida! Também não gosto do calor, sou muito mais o frio, daria uma boa gaúcha (no inverno daí claro rs!) Quanto as transformações da uva, isso que chamo de "fazer de um limão, uma limonada", ou melhor, fazer da uva, essas delícias que vc fez.O texto é lindo como sempre!
Fiquei sabendo da viagem a ES, fiquei muito feliz em saber que vc e a Lá vão se encontrar.Gosto muito de vocês duas, que são diferentes mas encantam igualmente pela aquela sintonia que ninguém explica. Te adotei como minha mãe gaúcha, tá rs?
gde abraço
Oi amiga
me perdoa pelo sumiço?
mas desde dezembro que não tenho tido um tempo decente para o computer, mas não esqueci você.
adoro a sua forma e delicadeza de escrever, seus textos e talentos sempre nos deixam apaixonadas, me perdi no suco de uva e que beleza a bolsa, ficou linda.
para mim és perfeita.
tenho certeza que irás adorar a Laély, ela é uma delicadeza de pessoas, por favor dê um abraço nela por mim, tá?
bom descanso
boas férias
adoro você
beijos
Fabiano, foi ler teu comentário e a encomenda desembargar aqui. Como já disse lá no teu blog, o móbile de folhas trouxe a alegria serena do outono pro meu dia, que não foi lá muito fácil. Obrigada mais uma vez pela gentileza. Abraço!
Cynthia, aceito o cargo honroso de tua mãe gaúcha e, veja só, só agora que me dei por conta que, por tabela, ganho dois netinhos também! Pois é, querida, a expectativa da viagem e encontro com a nossa amiga já quase me tiram o sono. Estou precisando de uma aventura, porque somos mesmo "meio santas e meio doidas", como diz Martha Medeiros. Beijão!
Oi, Eliene! Entendo bem os sumiços, porque volta e meia também preciso dar uma arejada por caminhos mais reais, não te preocupa. Se a Laély é a delicadeza em pessoa, tu és o afeto, que transborda pelas palavras, imagino só ao vivo! Darei o abraço e depois conto tudinho, tá? Beijo bem grande
Ai! Já sei o que quero que traga! Um bolinho desse, de superfície crocante e conteúdo macio, mais a geleia, pra saborearmos com iogurte natural. É pedir muito? rsrs
Laély, teu pedido é uma ordem: já tô indo pro fogão preparar a geleia, os bolinhos só na segunda, pra chegarem fresquinhos! Juro que lembrei de ti quando fazia a geleia na madrugada.
Rosana bom dia! Fico encantado com essas receitas de bolos de frutas, os acho lindos e gostosos, com um ar de dia de verao no bosque encantado das fadas!!
vou anotar a receita e guardar a imagem para sempre ter esta sensaçao ao vela, um abraço!
ps: Fico feliz que tenha gostado do presentinho!
Postar um comentário